Bibi Fatima and the King’s Sons

BIBI FÁTIMA E OS FILHOS DO REI

Dr Sultan bin Muhammad Al-Qasimi BIBI FÁTIMA E OS FILHOS DO REI Traduzido do inglês por Dr.ª Margarida Moreno Publications Al-Qasimi, 2019

Título do livro: Bibi Fátima e os filhos do Rei Publicado pela primeira vez em árabe sob o título “bybi fatima wa’abna’ almalik”2018 Nome do autor: Dr. Sultan Bin Muhammad Al-Qasimi (Emirados Árabes Unidos) Nome do editor: Al-Qasimi Publications, Sharjah, Emirados Árabes Unidos Ano de publicação: 2019 Direitos reservados Publications Al-Qasimi P.O. Box 64009 Sharjah, Emirados Árabes Unidos Email: info@aqp.ae ------------------------------------------------------- ISBN 978-9948-37-775-7 Autorização de impressão: Conselho Nacional de Mídia Abu Dhabi No. MC 03-01-3797494, Date:02-05-2019 “O grupo etário que corresponde ao conteúdo dos livros foi classificado de acordo com o sistema de classificação etária publicado pelo National Media Council” O grupo etário: E Jazeerat Printing Press, Sharjah, Emirados Árabes Unidos -------------------------------------------------- Capa: Bibi Fátima com traje “Bajoo”, na varanda do palácio do rei, na ilha de Ormuz, pelo artista espanhol Carlos Marinas

5 Índice Prefácio 5 Primeiro Capítulo Ormuz 9 Segundo Capítulo O Rei Ferug Shah 19 Terceiro Capítulo O Príncipe Feroz Shah 29 Quarto Capítulo Bibi Fátima 43 Quinto Capítulo O Príncipe Turan Shah 59 Sexto Capítulo O Príncipe Muhammad Shah 75 Personagens principais 95 Bibliografia 101

7 Prefácio Esta é a história de uma mulher ambiciosa que se agarra ao poder instável dos reis de Ormuz sob ocupação portuguesa. A novela oferece uma descrição pormenorizada da vida social em Ormuz, referindo ao mesmo tempo a situação militar, política e económica prevalecente nessa época. O Autor

9 Primeiro Capítulo Ormuz

11 À entrada do Golfo Árabe, existe uma área de 45 milhas entre a Península Arábica e a Pérsia, onde se encontram também algumas pequenas ilhas. A ilha principal, e de longe a maior entre elas, é Ormuz que era conhecida no passado como Gerun. Ormuz situa-se a 27º de latitude Norte, a nove milhas da costa da Pérsia, a trinta milhas da costa da Arábia, e tem pouco mais de nove milhas de raio. É uma terra extremamente árida, nada verde ali cresce, quase nunca. As únicas coisas de que se pode extrair benefício são as minas de sal de rocha e de enxofre. Também possui três fontes perenes, mas de resto não tem fontes de água potável. Apesar destas condições extremas, estão disponíveis e em abundância todos os tipos de víveres: caça, fruta fresca e frutos secos que se encontram em qualquer parte do mundo, bem como frutas totalmente diferentes das europeias. Vem tudo da Pérsia em grandes quantidades.

12 A cidade de Ormuz situa-se na ilha com dois excelentes portos próximos: o oriental e o ocidental, um comercial e outro militar. Em frente da cidade, mas no mesmo local, ergue-se a fortaleza, junto ao mar. Tem duas entradas: uma abre-se para a cidade e outra para o mar. Isto significa que era possível entrar e sair da fortaleza quer a partir de terra quer por mar. Além do porto militar, há também uma grande fábrica de pólvora, onde o exército português obtém os seus fornecimentos pelo Oceano Índico afora. A cidade de Ormuz é o entreposto comercial e o porto marítimo mais célebre do mundo. É um ponto de encontro para o comércio que ultrapassa todos os mercados orientais e ocidentais juntos. Possui igualmente um grande porto para todos os tipos de cavalos embarcados da Arábia para a Pérsia e a Índia. A cidade fornece os reis portugueses e os monarcas muçulmanos da Índia de tudo aquilo que precisam. Por isso, a importância da Fortaleza de Ormuz para os reis portugueses que a possuem não pode ser subestimada. A sua perda causaria os maiores prejuízos imagináveis para os portugueses. Na cidade habitam cerca de 200 portugueses casados, muitos habitantes locais e residentes, cerca de 7 000 pessoas. Isto para além dos mercadores portugueses que vão e vêm, bem como dos soldados portugueses aí estacionados. Quanto à população muçulmana e indiana, o seu número é de cerca de 40 000, para não mencionar os per-

13 sas, os turcos, os mongóis e vários outros comerciantes que trazem os seus produtos para o comércio e partem em seguida. O Rei de Portugal possui os direitos da casa da alfândega em Ormuz. Foi oferecida aos Reis de Portugal em conformidade com dois decretos promulgados pelos Reis de Ormuz. Anteriormente, a casa da alfândega costumava ser arrendada. No entanto, depois de os Reis de Ormuz serem repetidamente vencidos pelos portugueses, em especial desde que Afonso de Albuquerque, em 1514, suprimiu as suas revoltas, os portugueses tomaram posse dela. Além de serem súbditos dos Reis de Portugal, e do facto de ali existir uma fortaleza portuguesa, os Reis de Ormuz não tinham autorização de porte de armas. Por isso, não podiam manter o mar aberto a mercadores que transportassem as suas mercadorias nem receber direitos sobre as mesmas. Talvez a principal razão para a cobrança de direitos resida no facto de ser necessário manter o mar aberto para actividades comerciais, e a fim de controlar a pirataria em terra e no mar por meio de uma armada forte. Após os reis portugueses terem tomado Ormuz, os postos aduaneiros tornaram-se «seus» por direito, desde que eram obrigados a proteger o mar e a mantê-lo aberto ao comércio. Esse fardo foi retirado dos ombros dos reis locais de Ormuz, que se revoltaram contra os portugue-

14 ses, mas foram depois forçados militarmente a prestar vassalagem e a obedecer a Portugal uma vez mais. Ormuz tem o maior porto de todo o Este Asiático. Era visitado constantemente por venezianos, gregos, arménios e judeus. A maioria dos dias da semana era pontuada por dias santos de um ou outro grupo de residentes: para os cristãos, o Domingo; para os hindus pagãos, a terça-feira; para os muçulmanos, a sexta-feira; e para os judeus, o Sábado (Sabbath). A população da cidade de Ormuz inclui pessoas de todas as nações. Se por acaso lá for um dia visitar um amigo, verá que ele vive numa casa onde residem cristãos, judeus e pagãos; todos vivem religiosamente independentes uns dos outros. Apesar das suas diferenças religiosas, todos querem manter relações de boa vizinhança, falando entre si e visitando-se mutuamente sem restrições. Na ilha, existem igrejas cristãs, mesquitas muçulmanas, incluindo a grande mesquita com os seus altos minaretes, sinagogas judaicas, bem como pagodes pagãos. A oeste de Ormuz fica o território da Pérsia. A leste a Arábia. De ambos os territórios vem tudo aquilo de que Ormuz precisa: quantidades abundantes de milho, água, madeira, e muitas variedades de fruta.

15 Mais de 400 embarcações espraiam-se junto ao porto e encontram-se aí todos os meios de transporte necessários. As embarcações têm diferentes nomes conforme a sua dimensão, local de construção, tipo, etc. Na fortaleza de Ormuz existem 70 grandes canhões, todos em bronze. A fortaleza é rodeada de um fosso, dificultando a sua conquista. É constantemente vigiada por mais de 500 soldados. Há sempre navios no porto, vindos de toda a Índia, e transportando todos os tipos de produtos, entre os quais têxteis e medicamentos. São todos embarcados dali para a Pérsia, Arábia, Turquia e até para a Europa. Tudo pode ser encontrado em abundância: carne, peixe, pão, conservas de comida como compotas, frutos secos, etc. É tudo enviado para a Índia em grandes quantidades. O comércio de Ormuz é de longe o maior e mais importante de toda a Índia. Da Pérsia e da Arábia são enviados anualmente inúmeros cavalos para a Índia. Estes belos puros-sangues árabes são especialmente acarinhados por muçulmanos, e usados por muçulmanos, hindus e cristãos em toda a Índia. Provêm sobretudo de Mascate e do Bahrein. Os cavalos árabes são conhecidos pela sua agilidade e as suas origens imaculadas. Grandes quantidades de seda vêm da Pérsia, bem

16 como todos os tipos de tapetes, ervas medicinais, diversas mercadorias e dinheiros. Em troca, os persas recebem vários tipos de têxteis, porcelana, estanho, açúcar, índigo para tingir e medicamentos. De Bassorá vem dinheiro sob a forma de moedas de prata e ligas de metal, têxteis de pêlo de camelo, todos os tipos de tecidos, açafrão, papel e pano. Igualmente por via de Bassorá, os venezianos trazem de Itália vidros, pequenas peças de joalharia e muitos outros produtos sobre os quais o rei pode cobrar direitos aduaneiros. Ormuz também exportou muitos tipos de bens para Bassorá, a Síria, a Mesopotâmia, a Turquia e a Arménia. Tais bens incluíam carregamentos de alho, ceptros reais, canela, cardamomo, têxteis, porcelana e índigo para tingir, tudo em largas quantidades. Enquanto tal, Ormuz tornou-se o destino de todas as mercadorias a caminho da Índia, de qualquer parte do mundo e para qualquer outra parte. Até a pimenta preta [1] , que foi banida várias vezes, costumava ser transportada através do estreito de Ormuz em grandes quantidades para ser vendida nos mercados da Arábia. Também era 1. A pimenta preta era usada na Europa para conservar a carne. O comércio da pimenta era monopólio português.

17 o caso de muitos outros produtos que foram exportados para várias partes do mundo. Apesar do facto de a ilha de Ormuz ser escarpada e árida, tinha todos os tipos de mercadorias e produtos em abundância, a ponto de se tornar conhecida como o centro do mundo. Os seus habitantes de origem, tal como os vizinhos persas, costumavam dizer: «Se o mundo fosse um anel, Ormuz seria o brilhante nele encastoado». Para além das enormes e diversas actividades de que Ormuz beneficiava, era igualmente um grande armazém de todos os tipos de drogas medicinais, cosméticos naturais, etc. As melhores ervas medicinais a nível mundial vinham da Pérsia, e ainda muitos tipos de perfumes e os melhores antídotos do mundo cujo preço era o triplo do que vinha de Málaga. As moedas usadas em todos os territórios sob a autoridade do Rei de Ormuz eram as seguintes: 1. Lari: uma moeda de prata do Reino de Lar; tinha a aparência de arames entrelaçados e apresentava o selo do Reino de Lar; 2. Reis: a mais pequena moeda de bronze portuguesa; 3. Cruzado: uma moeda de ouro portuguesa; cada cruzado equivalia a 400 Reis; 4. Pardo: uma moeda de ouro do Leste da Índia. O visitante de Ormuz fica maravilhado com a ilha e

18 as suas gentes, cujo sal vem da montanha, cuja madeira vem do mar, e cujos tijolos flutuam na água. Isto deve-se ao facto de as montanhas de Ormuz serem abundantes em sal, enquanto que a madeira vem das árvores de mangue que crescem em leitos marinhos pouco profundos. Quanto aos tijolos para construção, vêm da ilha de Queixôme onde o coral é trazido do fundo do mar e se torna esponjoso quando seco e assim flutua na água.

19 Segundo Capítulo O Rei Ferug Shah

21 Estamos no início de 1588, e a cidade de Ormuz parece deslumbrante com os seus edifícios de vários andares, ruas estreitas cheias de gente que é uma mistura de várias raças, como se vê pelos seus diferentes trajes nacionais. Está frio, em contraste com o calor absolutamente insuportável do verão que começa em Maio e dura até Setembro. A mulher muçulmana é quem mais sofre nessas condições meteorológicas, porque cobre a face com um niqab e o seu véu cobre a cabeça e esconde o pescoço e o peito. Vamos agora ao palácio do Rei. Ali perto, vemos as escolas e os professores que se dedicam ao ensino da religião, bem como estudantes. Em frente do palácio fica a casa do vizir. À frente do palácio, há guardas com espingardas, que não são muito comuns, uma vez que só os portugueses podem possuir espingardas. Entramos no palácio por um portão primorosamente esculpido, para chegar a um am-

22 plo pátio onde se encontra o conselho [1] do Rei. Aí, podemos ver o Rei sentado no seu grande trono. À sua direita e à sua esquerda há lugares para os dignitários locais, bem como para os administradores portugueses e de Ormuz. O Rei é Ferug Shah bin Muhammad Shah (conhecido como Abunasser Shah) bin Turan Shah bin Salgor Shah. Salgor Shah era considerado infame pelos habitantes locais porque cedera às exigências dos portugueses e demolira todas as casas dos seus seguidores e apoiantes próximos, junto à fortaleza portuguesa, bem como alguns dos seus luxuosos palácios ali perto, a fim de que a fortaleza não fosse afetada de modo nenhum devido à proximidade desses edifícios. Turan Shah sucedeu ao seu pai Salgor Shah por um curto período de tempo. Quando faleceu em 1536, tiveram início as querelas sobre o direito de sucessão. Turan Shah tinha dois filhos: o mais velho era Muhammad Shah (Abunasser Shah) e o outro era Shaikh Jawid. Durante um ano, Muhammad Shah governou Ormuz, depois morreu. O seu irmão, Shaikh Jawid, devia suceder- -lhe. Contudo, Ferug Shah - filho de Muhammad Shah - conseguiu tomar o poder e baniu o seu tio, Shaikh Jawid que, por sua vez, submeteu a questão às autoridades portuguesas e pediu o governo como sendo seu por direito, reclamando igualmente a sua herança que lhe foi deixada por seu pai. Enraivecido, Ferug ameaçou matá1. Majlis.

23 -lo e recusou-se a entregar-lhe a herança, alegando que o dinheiro que Jawid queria não era do pai dele, mas pertencia ao Estado. Em consequência disso, Shaikh Jawid acabou por viver na miséria e na indigência, em Goa, onde residia o Vice-Rei português. No final de Novembro de 1587, Shaikh Jawid morreu e o seu filho manteve os pedidos do seu pai contra o Rei de Ormuz no tribunal superior de Goa. Ferug Shah estava sentado no seu conselho, preocupado com a decisão do tribunal. Sentado à sua direita, encontrava-se o seu vizir Rais Nuruddin, e a seguir a ele o seu irmão e ajudante, Sharafuddin, que o costumava substituir na sua ausência. Nuruddin tinha dado a sua irmã Latifa em casamento a Ferug Shah, e como condição da sua aprovação ao casamento, acordou com ele que se Latifa tivesse um filho, ele se tornaria seu herdeiro do trono de Ormuz. ARainha Latifa teve dois filhos de Ferug Shah: o mais velho era o Príncipe Muhammad Shah bin Abunasser Shah, e o outro o Príncipe Turan Shah. No entanto, Ferug Shah tinha outro filho chamado Feroz, de uma concubina. O estatuto de Feroz era objecto de disputa, porque umas vezes Ferug Shah reconhecia-o, e outras vezes não. Quanto a Rais Nuruddin, era casado com Shah Zinan, viúva de Rais Murad Daylamitia (dos Dailamitas), Juiz

24 do Bahrein, que provinha da linhagem dos Reis de Lar. Do seu anterior consórcio, Shah Zinan teve uma filha, Halima, que agora tinha quinze anos de idade, e um filho póstumo, Murad bin Murad, que tinha a alcunha de Daylamitia, de catorze anos de idade. De Rais Nuruddin, Shah Zinan teve uma linda filha agora com quatro anos de idade. O seu nome era Fátima, mas os pais chamavam-lhe Habiba Nuruddin; outras pessoas chamavam-lhe Habiba Fátima, ao passo que os estrangeiros lhe chamavam Bibi Fátima, o nome pelo qual se tornou conhecida. À esquerda do Rei Ferug Shah estava sentado o comandante e ora governador de Ormuz, Matias de Albuquerque. Ele costumava conversar com os jovens, tentando convencê-los a abandonar a sua religião e a tornarem-se cristãos. Convidava-os para casa dele e oferecia-lhes comida. O seu trabalho diário não consistia em tratar dos assuntos da ilha, mas antes em converter muçulmanos ao cristianismo. Obteve êxito com o filho de Shaikh Jawid, que se converteu após a morte de seu pai em 1587, e tomou um nome diferente: Dom Jerónimo Joede. Isto aconteceu em Goa. Aqui em Ormuz, Matias de Albuquerque tentava converter Halima, de quinze anos, e o seu irmão mais novo Murad Daylamitia, ao cristianismo. Chegou a prometer ao jovem Murad que, caso se convertesse, o faria vizir de Ormuz, e seria encarregado dos registos financeiros, o «findag». Halima e Murad mostraram interesse no que Matias

25 de Albuquerque estava a oferecer e começaram a receber lições sobre a fé cristã. Uns dias antes, Matias de Albuquerque falara com Rais Nuruddin, o vizir de Ormuz, e pedira-lhe a mão de Halima em casamento para o filho cristão de Shaik Jawid. Nesse tempo, ninguém sabia da sua conversão. Rais Nuruddin, porém, recusou delicadamente e disse que isso enfureceria o Rei de Ormuz. Para dentro do majlis do Rei Ferug entrou um jovem, Niamatullah, sujo e mal vestido, com uma barba densa e de olhar ameaçador. Era sobrinho do Rei e um inimigo figadal de Matias de Albuquerque. Tinha uma escola islâmica e dirigia uma frente nacional contra as actividades missionárias de Matias de Albuquerque. Aproximou-se do Rei, beijou-lhe a mão e tomou o seu lugar junto a Rais Nuruddin. De respiração ofegante, o seu coração estava prestes a saltar-lhe do peito. Tinha alguma coisa que queria dizer e estava a ficar impaciente por isso. Mesmo antes de chegar ao conselho do Rei, tinha dado de caras com Halima que corria ao sair de casa de Rais Nuruddin atrás da sua irmã mais nova Fátima. Halima tinha levantado o niqab e mostrara o seu belo rosto. Quase colidiram, tendo Halima dado um passo atrás, olhando para Niamatullah à espera que ele saísse do caminho para apanhar a sua irmãzinha mais nova. Mas Niamatullah estacou, e Halima acabou por bater com a porta na cara dele.

26 No conselho do Rei, Niamatullah falou baixinho a Nuruddin. O Rei perguntou então a Nuruddin por que motivo sussurravam: - Majestade, o vosso sobrinho, o Príncipe Niamatullah, está a pedir a mão da minha filha Halima em casamento - disse Nuruddin. - Seja, com as bênçãos de Alá - disse o Rei. Ao ouvir isto, Matias de Albuquerque levantou-se furioso e disse respeitosamente: - Isto não pode ser; isto não pode ser. E saiu do pátio intempestivamente. O Rei Ferug Shah, o seu vizir e todos no majlis ficaram muito desagradados com tão indecoroso comportamento. Em consequência disso, o Rei decidiu que o casamento devia realizar-se imediatamente. O Imã da Grande Mesquita foi chamado e as cerimónias de casamento foram celebradas. Na qualidade de procurador de Halima, Rais Nuruddin casou-a com Niamatullah. Halima viu-se forçada a este casamento pelo Rei, pelo seu padrasto o vizir Nuruddin, e pelos seus parentes. Resignou-se à vontade deles, mas durante o seu casamento com Niamatullah, ela nunca lhe facilitou a vida, e o casamento nunca foi consumado. Um dia, Halima disse a Niamatullah que queria visitar a mãe. Disse à mãe que nunca tinha querido viver

27 com Niamatullah, nem o queria ver nunca mais. Assim sendo, ficou com a mãe, nem casada, nem divorciada. Então, contactou alguém que era filho de um português. Tinha nascido em Ormuz e ensinou-a a ler e escrever em português. Ela disse-lhe que já não aguentava mais ver Niamatullah nem queria continuar a viver com ele. Pediu-lhe que informasse os monges cristãos da sua situação, e que queria converter-se ao cristianismo para ser libertada do vínculo do casamento com Niamatullah. O homem concordou em ajudá-la e contactou os monges encarregados do mosteiro de Ormuz. As notícias foram reportadas a Matias de Albuquerque que não podia acreditar no que ouvia e se apressou a ir imediatamente ao palácio real para falar com o Rei de Ormuz. Falou ao Rei sobre a situação de Halima e disse que o Rei de Portugal, que não tolerava a injustiça contra nenhum dos seus súbditos, também tinha sido informado do sucedido. - Se não é capaz de governar Ormuz com justiça, há outra pessoa que o pode fazer; o caso do filho de Shaikh Jawid ainda não está resolvido - ameaçou Matias de Albuquerque. Ao ouvir isto, o Rei Ferug Shah aprovou-a o divórcio de Halima e Niamatullah. Os monges decidiram então que Halima e o seu irmão Daylamitia deveriam partir de Ormuz para Goa. Devido à complexidade da situação, tiveram de esperar até Ma-

28 tias de Albuquerque estar prestes a partir como comandante de Ormuz de regresso a Goa. Arranjou-se a partida de Halima da casa de Rais Nuruddin durante a noite, para casa de um rico português. Isso facilitaria os seus movimentos seguintes para o navio militar que estava preparado para partir com Matias de Albuquerque a bordo. Apesar de esta ser uma operação extremamente difícil, foi bem sucedida, e Halima junto com o seu irmão acompanharam Matias de Albuquerque a bordo da nau de Sua Majestade, Nossa Senhora da Conceição. Em Goa, Daylamitia filho converteu-se ao cristianismo por intermédio de Matias de Albuquerque. Também tomou o nome de Afonso em memória de Afonso de Albuquerque que havia conquistado Ormuz com êxito. Quanto a Halima, tomou o nome de Filipa, como Filipe, o Rei de Portugal. Casou com António de Azevedo, a quem foi dada a fortaleza de Ormuz para governar conforme decretado pelo Rei de Portugal. No caminho por mar de regresso a Ormuz com o marido e o irmão, Halima faleceu, e foi deitada ao mar para ser comida pelos peixes. Afonso Daylamitia regressou a Ormuz e esperou pela sua nomeação como vizir e encarregado dos registos fi�- nanceiros da alfândega, ao atingir a maioridade, como lhe houvera sido prometido.

29 Terceiro Capítulo O Príncipe Feroz Shah

31 Em 1591, três anos depois do infeliz episódio com Halima - Murad - Niamatullah, faleceu Latifa, a mulher do Rei Ferug Shah e irmã do vizir Nuruddin. Não muito tempo depois, o próprio Nuruddin também morreu. Isto significava que o posto de vizir de Ormuz ficara vago. Essa posição estava prometida a Afonso Daylamitia bin Murad que era agora um convertido ao cristianismo. No entanto, o Rei de Ormuz tinha estabelecido uma condição antes de aprovar essa nomeação; ele queria casar- -se com Zinan Shah (conhecida como Sayyidatu-Nisa), a mãe de Afonso; proposta que ela aceitou ainda antes de o filho se pronunciar. Em resultado do seu casamento com o Rei Ferug Shah, Sayyidatu-Nisa levou a sua filha de sete anos, Fátima, e o seu filho Afonso Daylamitia, como novo vizir, e mudou-se para viver no palácio do rei com os filhos deste: Muhammad Shah, de catorze anos, e o seu irmão Turan Shah, de treze. No palácio tinham os seus aposentos privados.

32 Sayyidatu-Nisa estava no auge da sua glória, sentada no seu trono especial com a sua filha Fátima ao lado. Tinha o seu próprio majlis , usava uma coroa e os trajes mais finos e caros. Recebia as senhoras da alta sociedade de Ormuz, bem como os visitantes da ilha. Pagava todas essas despesas exorbitantes com as receitas da casa da alfândega cobradas pelo seu filho. Dizia que a riqueza lhe advinha das heranças após o falecimento dos seus dois anteriores maridos, Nuruddin e Murad. Oferecia presentes a todas as pessoas que a visitavam e, por isso, o seu majlis era sempre bem frequentado. Sentada no trono, preenchia-o com o seu corpo e os seus vestidos espampanantes. E era linda de se ver; todos os seus convidados, enquanto ali estavam, não tiravam os olhos dela. Apesar de ter 33 anos de idade, parecia uma jovem. Após a morte de Nuruddin, teve muitos outros pretendentes, que pediram a sua mão em casamento. No palácio, Fátima cresceu e chamavam-lhe Bibi Fátima. Foi criada com o primo Muhammad Shah. Tornaram-se amigos de brincadeiras. Ela usava a coroa da mãe, e ele a do pai, e ambos fingiam que eram rei e rainha. Estavam apaixonados e parecia que o casamento deles era apenas uma questão de tempo. No início de 1598, era óbvio que o Rei Ferug Shah estava a ficar muito velho. Passou a não ser capaz de sair do seumajlis . O vizir Afonso Daylamitia cuidava muito

33 bem dele, uma vez que vivia no palácio com a sua mãe, esposa do rei. Apercebendo-se de que estava muito envelhecido, Ferug Shah decidiu abdicar da coroa como Rei de Ormuz em favor do seu filho Muhammad Shah, cuja mãe era Latifa, irmã do falecido vizir Nuruddin. Para assegurar uma transição fácil, o Rei Ferug escreveu uma carta datada de 14 de abril de 1598 ao Vice-Rei da Índia, D. Francisco da Gama, dizendo: «Estou grato a Vossa Excelência por se recordar do meu filho, o Príncipe Muhammad Shah. Creio que ele é um homem que cumprirá o seu dever de bom vassalo. Tenho total confiança nele, e rogo a Vossa Excelência que aprove esta nomeação para o meu lugar, de acordo com o desejo do meu povo. Os residentes portugueses na cidade apreciam-no muito também. Tem todas as qualidades necessárias para esta posição. Quanto a mim, estou muito velho e fraco e desejo passar o resto da minha vida em paz e libertar-me para só venerar a Alá. Por conseguinte, rogo a Vossa Excelência que aprove a minha petição. Rezo para que Alá o proteja e lhe dê uma longa vida. Ormuz, 14 de Abril de 1598» Em 16 de Abril de 1598, contudo, Feroz Shah es-

34 creveu igualmente uma carta ao Vice-Rei da Índia, afirmando: «Rogo a Vossa Excelência que me permita informar- -vos sobre os assuntos de Estado. O vosso enviado viu com os seus próprios olhos como são as coisas. Talvez ele tenha uma visão mais informada da situação; melhor ainda do que eu posso escrever. Estou certo de que vossa justiça e a confiança com que Vossa Excelência se dignará tratar-me é a de um pai. Rezo a Alá para que conceda a Vossa Excelência uma longa vida a fim de que o Estado prospere e que a Vossa Excelência sejam concedidas muitas vitórias. Alá é Um e tem o poder de o fazer ... etc. Ormuz, 16 de Abril de 1598. O Vosso Príncipe de Ormuz, Feroz Shah» Assinar esta carta como «Príncipe de Ormuz» era um acto de desafio notório à vontade do seu pai. Uma terceira carta foi também enviada por Turan Shah ao Vice-Rei da Índia no final de Abril de 1598. Veio depois de Muhammad Shah ter desistido de suceder ao seu pai. Rezava o seguinte: «Ormuz, ... Abril de 1598

35 De: Príncipe Turan Shah Para: Dom Francisco da Gama, Vice-Rei da Índia Meu Senhor Vim a saber pela carta que Vossa Excelência enviara a meu Pai que goza de boa saúde. Que Alá o mantenha sempre assim para prosperidade do Estado, e para que eu me sinta feliz de que assim seja. Soube pela sua carta que aconselhou o meu Pai, uma vez que ele precisava de mais descanso e não estava em condições de dirigir os assuntos de Estado, que agora lhe pesam fortemente sobre os ombros. Mas, ao vosso serviço, tudo será mais fácil e todos os assuntos serão resolvidos da melhor maneira. Proporcionando-se esta oportunidade, gostaria de me recordar a Vossa Excelência pedindo que me permitais amavelmente dizer-vos mais sobre mim próprio: Sou o filho legítimo do Rei Ferug Shah e de Latifa, Rainha deste Reino. Sou o filho mais novo. Antes de meu Pai casar com Latifa, irmã de Rais Nuruddin, ele acordou com Nuruddin, tal como disposto em documentos governamentais, que em caso de nascimento de um filho, ele deve herdar o trono do Reino. Tanto Muhammad Shah bin Abunasser como eu somos filhos legítimos nascidos na constância do casamento em conformidade com as nossas leis.

36 Acresce que o meu Pai me concedeu generosamente essa honra, por decreto relativo à minha posição no Estado. Tudo o que peço a Vossa Excelência é a graça e a assistência de poder contar com o vosso apoio para confirmar a minha posição, como é justo e verdadeiro. Estou certo de que Vossa Excelência fará isso por mim. Tenciono enviar alguém a Vossa Excelência na época das monções; alguém que lho possa pedir de Vossa Excelência em pessoa. Ele levará consigo os documentos acima referidos a fim de que se digne aprová-los, porque o meu Pai já está muito velho e não se lhe pode confiar nada. Tudo está nas mãos de Alá, e mais tarde posso encontrar problemas com os meus irmãos. Foi por isso que me atrevi a escrever estas linhas a Vossa Excelência, pedindo que me envie a sua aprovação, e permanecerei sempre ao vosso serviço como é meu dever. Vossa Senhoria... etc. (...) Abril de 1598 Príncipe Turan Shah.» * D. António de Lima foi nomeado comandante da ilha de Ormuz.

37 Quando chegou a Ormuz, verificou que a principal razão para as condições instáveis no território era a disputa que tinha surgido entre Feroz Shah e Turan Shah relativa à sucessão no trono, sendo ambos filhos do Rei Ferug Shah. O conflito entre os dois teve graves consequências em Ormuz. D. António de Lima não permaneceu muito tempo em Ormuz e, em 28 de Dezembro de 1598, faleceu em consequência de uma enfermidade, segundo constou. Sucedeu-lhe D. Luís da Gama, nomeado como Comandante Militar da fortaleza de Ormuz por seu irmão D. Francisco da Gama, Vice-Rei da Índia. No início de 1599, o Vice-Rei da Índia enviou uma mensagem ao Comandante Militar de Ormuz, uma vez que o comandante da fortaleza ainda não chegara. Informou-o de que, se a questão da sucessão no Reino de Ormuz fosse mencionada, deveria confiar o governo do Estado ao filho mais velho do Rei Ferug Shah. Declarou também claramente que tal comissão deveria continuar até que o Vice- -Rei da Índia decidisse esse assunto nos devidos termos. O Vice-Rei da Índia escreveu igualmente outra mensagem a Afonso Daylamitia, vizir de Ormuz, instruindo- -o a dar a sua irmã, Bibi Fátima, em casamento ao próximo Rei, Feroz Shah; e que deveria resolver a situação no caso de a irmã e a mãe responderem negativamente. *

38 Afonso Daylamitia saiu rapidamente da casa da alfândega para o palácio do Rei com duas cartas na mão. Ao chegar ao palácio, dirigiu-se à sua mãe que estava a receber visitas no seu majlis. Chamou-a à porta que conduz aos aposentos e leu-lhe, em voz baixa, a carta enviada ao Rei sobre a entrega do trono a Feroz Shah. Chocada com o que ouvira, Sayyidatu-Nisa gritou: - Que desastre! Que desastre! Todas as convidadas vieram até à porta ao ouvirem aquele grito. Afonso Daylamitia, então, leu-lhe delicadamente a outra mensagem, estando as outras mulheres a escutar à porta. Agora, em estado de choque absoluto, Sayyidatu-Nisa começou a gritar: - O escravo vai casar com a minha filha? Um vil escravo do palácio vai ser o marido de Bibi Fátima, a neta de Khosrau? Ele era o meu glorioso avô! Como é que isto pode ser? O seu pai é Nuruddin, neto de al-Hassan, filho do Imã Ali e de Fátima, filha de Muhammad, o Profeta de Alá! Dei o seu nome à minha filha! Como é que a neta de Muhammad, Profeta de Alá, pode casar com um escravo? Isso não pode acontecer! Nunca! Então, ambos se apressaram a ir junto do Rei Ferug para o informar sobre as cartas.

39 Entretanto, as mulheres do majlis que tinham ouvido tudo o que foi dito, saíram do palácio, e rapidamente as ruas de Ormuz se encheram de mulheres com véu correndo de uma casa para outra, e as portas abriam-se e fechavam-se. As notícias espalharam-se como uma casa em chamas. Toda a cidade soube o que acontecera. No próprio palácio, a disputa entre os irmãos tornou-se tão agressiva que lutaram fisicamente um contra o outro. Em seguida, o Príncipe Turan Shah viajou até Goa para apresentar o seu protesto ao Vice-Rei da Índia, enquanto Muhammad Shah viajou ao encontro do seu tio, Rais Badruddin, Juiz Conselheiro de Magestan. * As notícias chegaram a Goa, e o Vice-Rei da Índia soube que a situação em Ormuz piorara drasticamente. Todas as fortalezas submetidas ao Rei de Ormuz ficaram em perigo de ataque por parte dos árabes da Península Arábica, bem como pelos persas dos territórios adjacentes. Esta situação podia ter consequências drásticas para a Índia que se encontrava sob o domínio do Rei de Portugal. O Comandante Militar de Ormuz relatou as notícias ao Vice-Rei da Índia, que por sua vez as reportou ao Conselho dos Comandantes em Chefe. Analisada a situação, concluíram o seguinte:

40 «O comandante militar de Ormuz deve forçar o Rei de Ormuz a abastecer as fortalezas com todos os alimentos e outros bens necessários; o Rei deve ser vigiado de perto e com atenção; as suas propriedades e bens devem ser confiscados a fim de assegurar que as fortalezas recebem os abastecimentos de que necessitam. Além disso, todas as tarefas e negócios necessários devem prosseguir como de costume. Mas o seu Reino não lhe deve ser retirado porque não há razões ou justificações suficientes para isso. O Vice-Rei da Índia deve escrever ao Rei de Ormuz para o convencer a permitir que o seu filho mais velho governe depois dele. O Rei também deve tentar casar o seu filho com a filha do vizir porque isso pode levar a resolver a situação e conduzir à melhor solução. Quer esse casamento se realize ou não, o Rei de Ormuz deve deixar o seu filho governar o país em sua representação, dado que o seu filho tem as competências e capacidades necessárias. O Comandante Militar deve entregar-lhe (ao filho) o governo do país e o Pai (Rei de Ormuz) deve declarar que abdica. cc - Comandante Militar de Ormuz para execução cc - Rei de Ormuz cc- Vizir Afonso Daylamitia.»

41 Consequentemente, Feroz Shah sucedeu ao seu Pai, Ferug Shah, depois de este anunciar que abdicava em favor do filho mais velho, que continuaria a ser seu representante até ele (o Rei) falecer. Feroz Shah tomou todos os poderes do país, à excepção da casa da alfândega e das respectivas receitas.

43 Quarto Capítulo Bibi Fátima

45 No início de 1601, todo o governo de Ormuz se encontrava nas mãos de Feroz Shah. Aúnica coisa que escapou ao seu controlo foi o casamento com Bibi Fátima que se revelou ser uma luta decisiva entre ele e Sayyidatu-Nisa. Um dia, estando Feroz Shah a sair da fortaleza portuguesa depois de um encontro com o comandante militar, viu aberta, em frente do portão da fortaleza, a porta da casa de Rais Badruddin, Juiz Conselheiro de Magestan. Foi lá, bateu à porta e foi bem recebido por Rais Badruddin que o convidou para o seumajlis . - Os portugueses estão sob grande pressão; os seus poderes estão enfraquecidos e as tribos árabes estão a atacar os nossos territórios nas costas do Golfo e na costa de Omã - disse Feroz. - Do lado persa, as nossas forças estacionadas encontram-se igualmente ameaçadas pelas forças persas. Como é a situação onde vos encontrais, em Magestan? - perguntou.

46 - Vossa Alteza conhece a zona da montanha perto da costa persa defronte a Ormuz; estende-se até às fronteiras de Kerman onde está a fortaleza de Magestan Tezreg. Esta zona tem a única estrada desde Kerman até às regiões nortenhas. A maioria dos rendimentos provêm dos serviços prestados às caravanas e das contribuições que lhes são cobradas. Se esta zona cair nas mãos erradas, o governo de Ormuz ficaria privado desses rendimentos. De facto, vim aqui para vos pedir o reforço dessas fortalezas e torres, bem como o fornecimento em homens e armas - disse Rais Badruddin. - Existem ameaças contra nós por parte de Lar? - perguntou Feroz Shah. - Lar está sob ameaça das forças militares persas - respondeu Badruddin - Não tentará invadir Magestan, especialmente depois de lhes ensinarmos uma lição inesquecível. - Vós estáveis lá quando Magestan foi recuperada. Contai-me como é que isso aconteceu a fim de tomarmos as precauções necessárias - disse Feroz Shah. Rais Badruddin começou a contar a Feroz Shah os pormenores do que tinha sucedido: - Foi com o meu irmão, o vizir Nuruddin, o vosso pai e as tropas portuguesas. Depois de o filho mais velho do Rei de Lar ocupar essa região em 1582, chegaram notí-

47 cias de que o seu pai havia falecido e que o seu irmão mais novo tomara o poder em Lar. Ele regressou imediatamente a Lar com as suas tropas conquistadoras para tomar Lar ao irmão. No entanto, deixou para trás uma guarnição na fortaleza de Tezreg e outra em Shemel. As forças portuguesas que eram acompanhadas pelo Rei de Ormuz, Ferug Shah, conseguiram recuperar a fortaleza de Tezreg, mas não a de Shemel. Assim, montaram um cerco a esta fortaleza, durante um longo período, sem resultados. Viemos a saber que havia espiões de Lar que penetraram na fortaleza de Shemel com alimentos, usando cestos atados a cordas que içaram do topo da fortaleza. Como as altas palmeiras estavam muito próximas da fortaleza, estas actividades não foram detectadas a tempo. Finalmente, um dos chefes serviou de mediador entre as partes em liça. Propôs ao Rei de Ormuz que os habitantes de Lar deixassem a fortaleza desarmados, na condição de o Rei de Ormuz lhes conceder protecção desde o momento em que partissem da fortaleza até chegarem à encruzilhada que conduz ao Reino de Lar. Isto foi acordado; mas quando os habitantes de Lar desceram ao vale, no início da estrada de Shemel, os habitantes de Shemel atacaram-nos e mataram-nos a todos. Isto enfureceu o chefe mediador que montou o seu cavalo e se apressou a toda a velocidade para o acampamento português no planalto junto à fortaleza, gri-

48 tando «Gonçalo [1] , Jerónimo [2] ». Estes eram os nomes dos oficiais portugueses encarregados desta campanha. Entrou na tenda do comandante com o seu cavalo por um lado e saiu pelo outro lado com a rapidez de uma bala, no local onde se situavam as tendas dos soldados. Mas assim que os soldados o viram, atacaram-no com as suas espadas e cortaram-lhe o corpo em pedaços. O Rei ficou furioso com o que os habitantes de Shemel fizeram. Estes responderam-lhe afirmando que aqueles soldados de Lar tinham violado a sua honraassim que chegaram a Shemel. Rais Badruddin mudou então de assunto e disse: - Vim aqui para informar o vosso pai, o Rei, de que o filho dele Muhammad Shah me pediu a mão da minha filha em casamento. Eu disse-lhe que tinha de falar primeiro com o vosso pai, o Rei. Permitis-me que vá encontrar-me com o vosso pai? - Também eu vim pedir-vos para me casar com a vossa sobrinha, Bibi Fátima, por ordem do Vice-Rei da Índia - disse Feroz Shah. - Já ouvi dizer - disse Basdruddin - Não tenho objecções a esse pedido, mas devo pedir a aprovação do Rei e da rapariga. 1 . D. Gonçalo de Menezes era o Comandante da fortaleza de Ormuz. 2 . D. Jerónimo de Mascarenhas era o General.

49 - Vamos então ao palácio - respondeu Feroz. Ficaram no palácio o velho Rei Ferug Shah e sua mulher, Sayyidatu-Nisa, e a filha Bibi Fátima e o filho, o vizir Afonso Daylamitia. Também tinham alguns criados numa ala do palácio perto da zona da cozinha. Feroz Shah e Rais Badruddin chegaram ao palácio e pediram a Sayyidatu-Nisa para verem o Rei Ferug Shah. Ela autorizou-os. Na presença do Rei, Rais Badruddin perguntou-lhe como estava e depois contou-lhe da proposta de Muhammad Shah de casar com a sua filha. Ferug Shah aprovou-a. Em seguida, Rais Badruddin falou ao Rei da proposta de Feroz Shah de casar com Bibi Fátima. O Rei disse que Rais Badruddin deveria ir perguntar-lhe directamente se aceitaria a proposta de Feroz. Rais Badruddin foi falar com Bibi Fátima. Chamou- -a e contou-lhe do desejo de Feroz de casar com ela. Ela não deu resposta, nem positiva nem negativamente. Em vez disso, retirou-se para dizer à mãe o que lhe tinha sido pedido. Rais Badruddin voltou para junto do Rei que lhe perguntou o que tinha dito Bibi Fátima. - Ela calou-se - respondeu Badruddin. - Quem cala consente - disse o Rei - Que se casem.

50 Bibi Fátima casou-se então com o filho do Rei de Ormuz, Feroz Shah. Apesar de se esperar que um filho deva suceder ao seu pai no trono, Feroz Shah era filho de uma escrava. Os seus direitos, comparados com os dos outros filhos do Rei, eram de especial natureza. De uma forma estranha, eles possuíam o que o pai deles possuíra, ou seja, eles possuíam a mãe de Feroz, uma vez que o pai deles não lhe tinha concedido a liberdade. Ao mesmo tempo, Bibi Fátima era filha do cunhado do Rei e irmã do alto funcionário, o vizir em cujas mãos se concentravam todos os poderes de governo, incluindo o poder judicial, a execução da justiça e o controlo das finanças ao mais alto nível. Feroz Shah insistiu em consumar o seu casamento com Bibi Fátima que continuou a adiar, fingindo que não se sentia bem. Finalmente, decidiu-se que ela deveria mudar- -se para junto do marido dentro de apenas uma semana. Bibi Fátima reagiu rapidamente. Enviou uma série de mensagens ao Padre através do jovem que era o seu professor de Português. Nas suas mensagens, implorava-lhe que a instruísse relativamente ao que poderia fazer para atingir o seu propósito. Também reportou a situação ao comandante militar. Naturalmente, tinha consciência de todos os riscos em que incorria a fim de cumprir o seu objectivo. Também entendia que o Padre estava a fazer tudo o que podia para a ajudar.

51 Na sua correspondência com o comandante militar, ela usou os mesmos meios de comunicação, e escreveu que estava desamparada e que a responsabilidade recaía nos próprios ombros dele, porque a vida dela estava em perigo, bem como a sua salvação eterna. Afirmou que a sua situação era desesperada e que era importante que fosse dada resposta ao seu pedido de ajuda como mulher muçulmana, e que era preciso ter uma razão realmente muito forte para não arriscar numa situação tão grave como a dela. O comandante militar respondeu dizendo que, se era esse o caso, ele precisava de um sinal dela relativamente à veracidade dos seus pedidos. Disse que se encontraria numa zona ao ar livre fora da cidade a determinada hora e que precisava da confirmação dela quando ele estivesse a caminho. Disse que poderia chegar a uma conclusão desejável se ela confirmasse o que dissera, e que o sinal que queria para essa confirmação era o de ela lhe enviar um vestido seu. Bibi Fátima enviou-lhe um dos seus vestidos de seda Bajoo que era usado naquela terra como uma espécie de camisa. Claramente, não se podiam dar ao luxo de se atrasarem a responder a pedidos de ajuda tão fundamentados. Bibi Fátima vivia num dos apartamentos do palácio real com o seu irmão e a sua mãe. Havia também ou-

52 tras pessoas. Para alguém como ela, a viver em tal lugar, pode imaginar-se o tipo de problemas que teria se o seu plano fosse descoberto. Primeiro, fingiu estar doente e a precisar de descanso a fim de poder recuperar de uma doença que era totalmente diferente da que a mãe pensava. O comandante militar chamou Álvaro de Avelar, o almirante da frota, e informou-o de que precisava de manter alguns criminosos como prisioneiros num lugar em que ele próprio tinha de estar com 50 soldados, e que ele deveria prontificar-se a vir ajudar no caso de acontecer alguma coisa. Contando a mesma história, ele instruiu o hajib para esperar noutro sítio. Chamou também Simão Ferreira, o intérprete, que era um homem com grandes poderes e fama em todas as nações. Pediu-lhe para esperar num terceiro local. Fez um conluio secreto com ele e depois deu-lhe instruções para vigiar o portão de casa do vizir, de onde Bibi Fátima podia sair, e para o reabrir se necessário. Eles discutiram a situação e concordaram que Simão Ferreira devia ir junto do vizir Afonso Daylamitia, irmão de Bibi Fátima, em representação do comandante militar e dar-lhe instruções para conduzir negociações com uns comerciantes persas que tinham acabado de chegar, bem como com outros que tinham regressado do Hajj [1] . 1 . Peregrinação a Meca.

53 A ideia era que a barra do porto devia manter-se aberta. O comandante militar avisou Simão Ferreira de que se ouvisse algum barulho ou distúrbio, ele devia dizer ao vizir em sua representação que não deveria ocorrer qualquer distúrbio, caso contrário, seria repreendido por causar um motim. Em seguida, foram colocados soldados e armas na fortaleza. Seguiu-se o envio de uma ordem para o comandante do navio sobre o procedimento a seguir em caso de ocorrência de qualquer incidente. À noite, o comandante militar partiu, levemente armado, com o Padre e o jovem, que era um cúmplice. Com o jovem a servir de guia, entraram pelo portão de casa do vizir. Naquele momento, ele estava muito ocupado com as questões do porto. Eles subiram as escadas até chegarem à entrada de um quarto. Ficaram na escuridão enquanto o jovem entregava uma mensagem a Bibi Fátima. Assim que ela recebeu a mensagem, saiu sozinha procurando-os onde eles estavam escondidos. Estava em estado de choque quando se aproximou do comandante militar. Tocou a mão dele para confirmar que lhe faltava um dedo, sendo este o sinal que confirmava a sua verdadeira identidade. Era ele. Ela percebeu que os seus desejos em breve se tornariam realidade. - Faça-se em mim segundo a vontade do Senhor - disse ela.

54 Perante o Padre, ela reiterou as mesmas confissões, e em seguida todos desceram as escadas. Ao chegar ao portão, o comandante militar e o hajib tomaram conta da situação. Levaram-na para casa de Simão Costa, o supervisor do Tesouro, um homem muito respeitável e poderoso da cidade. Ele vivia perto da fortaleza. No porto, os habitantes estavam a fazer barulho enquanto esperavam pelo desembarque dos peregrinos que iam chegando. Os soldados, aproximando-se do porto, também faziam muito ruído. Estavam ali para evitar que os peregrinos saíssem do navio. O comandante militar disse ao vizir para acalmar o seu povo para que pudesse debater a situação no dia seguinte. O vizir ficou satisfeito e as coisas acalmaram... O comandante militar retirou-se para a fortaleza, deixando Bibi Fátima muito bem vigiada no local para onde tinha sido trazida anteriormente. A própria Bibi Fátima estava muito contente com a sua fuga. Na manhã seguinte, bem cedo, o Rei e cerca de 5 000 habitantes de Ormuz estavam à porta de casa de Rais Badruddin que dava para o pátio aberto em frente do portão da fortaleza. Dali, o Rei queixou-se amargamente ao comandante militar àcerca do rapto de Bibi Fátima e exigiu que a sua nora regressasse, dizendo que Sua Majestade discordava do sucedido. O comandante militar enviou um emissário com

55 a mensagem a dizer a todos os árabes que não eram parentes da família ou não estavam ao serviço do Rei que deviam permanecer nas suas casas sob ameaça de morte em caso de desobediência. Informou-os de que a senhora muçulmana, Bibi Fátima, estava pronta para receber uma delegação e que ele tinha dado autorização não só aos clérigos muçulmanos para estarem presentes, mas também à mãe de Bibi Fátima e ao vizir, Afonso Daylamitia. Ao ouvir isto, o Padre gritou em português, dirigindo- -se à multidão de portugueses na fortaleza: - Esta é a grandeza da nossa fé pura e verdadeira. A questão pode ser discutida sem mancha de fraude ou suborno, podemos debatê-la livremente e com confiança, em plena luz do dia, abertamente e num local público. Esta nossa religião atraiu esta mulher nobre e livre, e a glória de Deus seria ainda maior, uma vez que o nosso inimigo estará em confusão total no fim da batalha. O comandante militar, em seguida, deu ordem a Fátima de explicar com o auxílio do intérprete e na presença de todos se ela tinha sido enganada ou coagida a mudar de fé. - Não fui induzida em erro nem coagida; é de minha livre vontade que desejo deixar a a fé islâmica e abraçar a fé cristã - afirmou Bibi Fátima.

56 Os clérigos muçulmanos ficaram chocados e alguns deles levantaram-se gritando e amaldiçoando. Amãe de Bibi Fátima e os seus amigos e criadas choravam com pena dela. Mas Bibi Fátima manteve a calma e contemporizou, mantendo-se firme como uma rocha. O comandante militar acompanhou alguns dignitários locais juntamente com alguns chefes mais importantes até à fortaleza para visitar o vizir Daylamitia, irmão de Bibi. Ali, ele mostrou a mensagem que Bibi Fátima lhe tinha enviado, bem como o seu vestido que ela tinha mandado como sinal da veracidade das suas pretensões. Em seguida, o comandante militar ordenou que Bibi Fátima fosse baptizada. As janelas do palácio foram lindamente engalanadas, tal como as ruas e os arcos de triunfo onde passaram. A fortaleza foi iluminada, dispararam-se tiros de canhão, tocou-se todo o tipo de música em diversos instrumentos, seguindo-se jogos com música militar e celebrações de júbilo. A conversão de Bibi Fátima foi festejada como se ela fosse a prometida. O comandante militar com um grupo de portugueses levou-a em seguida no seu traje festivo para o navio que a levaria para Goa, na Índia. Em Ormuz e nos territórios próximos falou-se muito sobre a neta do Profeta de Alá que se converteu ao cris-

57 tianismo. As notícias chegaram longe, até mesmo à corte do Shah Abbas em Isfahan. Quanto a Feroz Shah, ficou furioso. Para se vingar, retirou Afonso Daylamitia do seu posto de vizir e director da alfândega, dizendo-lhe que a culpa era dele. Em seu lugar, nomeou Rais Sharafuddin, irmão de Rais Nuruddin, que era seu ajudante. Afonso Daylamitia opôs-se ao comandante militar, que o aconselhou a submeter a questão ao Vice-Rei em Goa. Em Goa, Daylamitia queixou-se ao Vice-Rei que, por seu lado, o aconselhou a ir a Portugal e falar com o Rei de Portugal sobre a situação. Daylamitia partiu imediatamente para Portugal. Em Lisboa, o Rei de Portugal recebeu muito bem Daylamitia e enviou-lhe um decreto reconhecendo que as suas queixas eram fundadas. De qualquer modo, deu- -lhe a honra de o enviar para uma das fortalezas da Índia a fim de a governar. Daylamitia partiu então de Lisboa para a Índia. Ao chegar ao Cabo da Boa Esperança, Daylamitia morreu. Foi lançado ao mar para ser comido pelos peixes.

59 Quinto Capítulo O Príncipe Turan Shah

61 Na primavera de 1601, não se falava de outra coisa senão da neta do Profeta de Alá que abjurara o Islão para se tornar cristã. O Príncipe Feroz Shah não teve outra escolha senão divorciar-se de Bibi Fátima. Casou em seguida com a filha do seu vizir, Rais Sharafuddin. Quanto a Sayyidatu-Nisa, nada lhe restava em Ormuz, a não ser o marido atado à cama, o velho rei. Antes que Feroz Shah se pudesse virar contra ela e apoderar-se de toda a sua riqueza e das suas jóias, alegando que eram propriedade do Estado furtada pelo seu filho das receitas da alfândega, como ele costumava dizer, ela decidiu agir com precaução. Ela sabia que, quando o velho rei morresse, e Feroz Shah tomasse o poder absoluto como rei, ele a castigaria pelo que ela tinha andado a espalhar sobre ele ao povo. Por conseguinte, ela juntou todo o seu dinheiro e as suas jóias e partiu para a fortaleza de noite. Ali, ela disse ao comandante:

62 - Desejo tornar-me cristã, e imploro protecção contra o Príncipe Feroz Shah porque ele quer retaliar contra mim. Quero também ir viver com a minha filha. Acontece que um navio português estava de partida nessa madrugada. Levaram-na para bordo e, ao nascer do sol, Sayyidatu-Nisa seguiu viagem com o seu dinheiro e as suas jóias pelo mar aberto até Goa. Durante a manhã, as notícias espalharam-se como uma casa em chamas: a esposa do rei tornou-se cristã e fugiu para Goa. Os habitantes longe do palácio diziam: - ARainha Latifa, filha da nobreza, neta do Profeta Alá, converteu-se ao cristianismo! Como é que isto é possível? As notícias corriam de boca em boca. - Ela é irmã de Rais Nuruddin, antigo vizir de Ormuz. Ela é irmã de Badruddin, Juiz Conselheiro de Magestan. E ela é irmã de Rais Sharafuddin, actual vizir de Ormuz. Que vergonha! A má língua das pessoas não poupa ninguém. Em consequência disto, Rais Sharafuddin, vizir de Ormuz, teve de ficar na Grande Mesquita depois das orações de Jumu’ah de sexta-feira para explicar ao povo a verdade sobre o assunto e que a sua irmã, a Rainha Latifa, tinha falecido há muitos anos. Só assim é que se enterrou a questão.

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